Vidas
Noturnas
Dedos frios percorreram as fissuras umedecidas da parede
subterrânea do esgoto. Uma passada vacilante e incomum avançava
em frente com a disposição de um enfermo à beira da morte. Um
rato anunciava o estranho andarilho, para logo depois se calar
diante de um olhar hediondo e de ouvir um sussurro indistinto.
A frente, no teto, a tampa do bueiro deixava escapar, por suas
brechas, um pálido filete de luz proveniente de um poste, que
era momentaneamente interrompido por insetos em volta da
lâmpada.
Em algum canto do mundo de vidro e luzes acima, um grito e um
choro formavam um par de anônimo e fugaz, ao saudarem suas
desgraças, pela noite, inconstante dos insetos do poste
elétrico e estendeu uma mão enrugada e distorcida de encontro a
tampa de ferro.
Rangendo como um bloco de concreto em um piso de mármore, o
tampão do esgoto deslizou para o lado deixando emergir um figura
curvada e encolhida. Os olhos insanos ostentavam um brilho
vermelho e sólido, e oscilavam ora num canto ora noutro, como um
animal à espreita.
O vulto deixou sua estagnação e se mesclou às trevas
onipresentes, farejado algum sinal de sua caça. Um odor suave e
adocicado ensaiou um balé inebriante a caminho de seu olfato
implacável, convidando-o à um ceia insólita, porém,
suculenta. O andarilho deixou-se acariciar pela graça da
fragrância, guiando-se pelo impulso faminto e pelas espirais do
aroma. Seu corpo entorpecido cambaleava como um embriagado e sua
mente era como uma pétala de lírio flutuando em um lago
adormecido.
Logo o odor era mais forte. A vítima, uma menina distraindo-se
num balancê em um parque próximo entoava um cantiga singela e
acalentadora, sem culpa, sem medo e sem ódio. Suas tranças
douradas roçavam suave nos ombros, reluzindo ao luar. Seu rosto
redondo mostrava o reflexo da pureza, revelando uma alma isenta
de qualquer mácula, como um véu de seda branca jamais usado.
Como uma flor que ainda não desabrochara.
Contemplando a fonte de seu sustento, o andarilho deslizou suas
pernas na direção do parque, sentindo o perfume cada vez mais
intenso. Era chegada a hora de se alimentar, não importando de
quem fosse. Já o fizera algumas vezes, e o costume da fome o
levara a se portar com certa indiferença, do tipo que se mostra
quando se abate um animal no matadouro. Suas presas
desabrigavam-se do céu da boca, excitadas com a aproximação,
e, se estivesse vivo, seu coração demostraria uma inquietação
violenta, como uma fera selvagem tentando se libertar da jaula.
Em compensação, seu espírito era uma turbulência de memórias
passadas, ilegível e ainda assim familiar, que percorria seu
instinto como um estopim desprovido de explosivo.
O parque se aproximava. O ritmo dos passos era insuportável,
porém, necessário para manter o disfarce andrajoso do manto
noturno à sua volta. O silêncio marcava o lugar com sua
atenção, dando a impressão de que o mundo tinha parado para
testemunhar seu crime, por mais vital que fosse. Sentia como se
toda a platéia o observasse ali, com a frieza com que se assiste
um filme, e ainda prestes a denuncia-lo a qualquer momento. Mas
quem seria tal platéia, pensava ele, e onde poderia esconder? Se
fossem qualquer coisa, estaria em qualquer lugar. Uma pedra, uma
árvore, um poste de luz. Isso o deixava receoso. Era um criatura
da noite, inspirava temor, ocultava-se nas sombras, alimentava-se
de sangue, e estava com medo.
O parque se aproximava. A lua derramava seu brilho sobre a
criança, envolvendo sua distração e guardando seu precioso
tesouro pueril. O balanço do brinquedo contagiava com sua calma
extasiaste, e o canto infantil da pequena alma desenterrava
lembranças esquecidas do passado do andarilho, quando era
mortal, e quando era lhe possível Ter um vislumbre da eterna
chama do sol. Mas como seu corpo vira a falecer, sua vida
anterior morrera com ele. Agora só lhe restava o licor escarlate
que nutria sua existência e trazia em seu sabor o peso da
maldição dos mortos-vivos, que não podia ser ignorado ou
esquecido.
Sua fome era voraz, pois há muito que não se alimentara, em
conseqüência do esforço de resistir à Besta. O atraso em
saciar sua necessidade aumentou o desejo por sangue de tal
maneira que era preciso esgotar um mortal até a última gota
para deixa-lo satisfeito.
Mesmo que esse mortal fosse uma criança.
Ele alcançou o parque. Admirou o odor delicado de sua vítima.
Percebeu as cores vibrantes de seu vestidos serem ofuscadas pela
suavidade de sua pele. Lentamente, deixou sua mão percorrerem a
distância até os frágeis ombros da criança, onde abriu um
caminho entre seus cabelos encaracolados até poder observar a
pele rosada de sua jugular. A ansiedade era pertubadora, e já
imaginava o líquido rubro descendo em uma cachoeira revigorante
pela sua garganta, preenchendo-o com a vida. Sua boca era
atraída como um imã. O balancê parou, mas o canto continuava.
A antecipação amorteceu-lhe os sentidos. O cheiro doce
invadia-lhe as narinas. Era mais um animal no matadouro.
Um impulso vesânico levou seus dente ao encontro do pescoço da
criança. Podia sentir a presença das hemoglobinas em suas
veias, prontas para serem possuídas pelo anseio de alguém que
as deleitasse. A noite era dele. No céu, a lua permanecia
impotente.
Gritos. Choros. Insetos em volta da lâmpada.
Seus olhos se encontraram com os da menina. Ele tinha uma
expressão ingênua e concisa, como se escondesse algo grave. De
tão perto, podia notar seu rosto levemente pálido, seus olhos
profundamente frios e seus caninos afiados desagradando seu belo
sorriso...
Afastou-se com repulsa. Não acreditava que o mundo tivesse
contaminado assim. Agora que sabia que a maldição podia se
espalhar por qualquer pessoa, seus últimos pedaços de
esperança estilhaçaram-se para sempre. O mundo pertencia à
noite.
Deixando a cantiga da criança penetrar seus ouvidos e o lamento
de sufocar sua alma, o andarilho afundou-se nas trevas e seguiu
seu caminho. Alguma parte da noite reservava um alimento quente
para ele.
Se fosse qualquer coisa, estaria em qualquer lugar.